domingo, 24 de maio de 2020

Amaldiçoados Homens


Eu não acredito que os homens sejam todos iguais ou maus.
Não é a minha forma de abordar a violência de género que vemos acontecer diariamente. Para mim as pessoas não são más de essência. Eu acho que todos nós, na nossa forma mais pura somos amor, o nosso espírito é amor. Por sermos amor na nossa forma mais pura não é possível sermos puramente maldade. O que eu acredito que acontece é que vivências, aprendizados, padrões de pensamento, traumas dores, desequilíbrios na nossa psique e alma nos fazem agir de certas formas menos harmoniosas. E a violência é a expressão clara do desequilíbrio e desarmonia.

Não é possível fazermos mal a outra pessoa, por prazer só, quando estamos bem connosco mesmos. É tanta coisa boa dentro de nós e à nossa volta que a nossa atenção simplesmente não está para aí virada. As nossas fontes de prazer são coisas que nos fazem bem a nós. É um estado que quase que nos leva a esquecermo-nos da existência dos outros a tal ponto nem nos lembramos de lhes fazer mal.

É por sermos amor na nossa essência que é possível nos arrependermos dos actos maus que cometemos, pedirmos perdão e não voltarmos a fazê-los. Mas é não compreendendo profundamente porque é que os cometemos que nos faz voltar a cometê-los.

Imagino que a maior parte dos homens que são violentos connosco não saberá nos responder porque é que o é. Alguma coisa nele o impele a fazê-lo. Alguma coisa que está tão entranhada que ele mesmo não percebe a lógica, mas segue o impulso. Depois de seguir o impulso tenta arranjar justificações para si mesmo para o ter feito. E daí ele tem que estabelecer um sistema de crenças que validam os seus actos violentos: “A mulher é assim, tem que ser disciplinada” ; “A mulher é inferior, deve-me respeito” ; “É meu dever como homem fazer-me respeitar” ; “Eu não sou um homem se não for temido”. Da mesma forma que nós mulheres estabelecemos também a crença de que “os homens batem, e assim é.”

Na minha perspectiva há no homem um ser em desequilíbrio, profundamente afectado negativamente por aquilo que o patriarcado lhe ensinou como suas verdades absolutas sobre a sua masculinidade, mas de uma forma tão velada, que nem ele mesmo percebe. Não se dá conta.

Photo by jurien huggins on Unsplash


Esta semana escrevi isto no IG sobre o livro de Trevor Noah, “Born a Crime”:

“É brilhante todo o livro mas preguei-me num aspecto. Na história de violência doméstica que sofreu a mãe do Trevor, não da perspectiva do sofrimento dela e dos filhos dela que é um sofrimento real que não podemos desmentir. Mas da perspectiva de Abel, o marido violento.
Cada vez que Abel batia, Abel também se desculpava. E desculpava-se de verdade, segundo a descrição de Trevor. Ele realmente sentia que tinha errado. A sua única justificação era sempre: "Eu sinto que ela não me respeita." O "desrespeito" da mãe de Trevor estava simplesmente no facto de ela se permitir ser um ser humano com liberdades, independência, capacidade de subsistência e direitos. Isso para Abel era uma afronta!

Não diferente do que era num Apartheid uma afronta para um branco um negro ter a sua liberdade, independência, capacidade de subsistência e direitos. Vi um paralelo ali: No racismo, o negro, ser que é considerado inferior, ao tentar viver a sua plena liberdade e direitos, afronta o branco. O que o branco considera desrespeito porque ele mesmo catalogou o negro como inferior. "Ele não tem nada disso, isto são só direitos meus que sou superior e ao tentar ter desrespeita-me!" No patriarcado, o mesmo esquema de pensamento está estabelecido.

O ser humano sempre procura um outro ser para inferiorizar, para que ele se sinta bem. Mas porque é que ele n se sente bem? Porque é q não se sente bem sem inferiorizar ninguém?
Porque construiu uma programação mental que lhe causa constante insegurança e o faz auto desvalorizar-se por não ser mais do que um outro. O só ser não é suficiente para nós nos sentirmos bem connosco mesmos.

Nós temos sempre que ser mais que alguém para nos sentirmos empoderados, e só empoderados nos sentimos seguros, só empoderados nos sentimos valorizados.
Estupidamente pomos o nosso valor no "ser mais que" do que no "ser". Deixamos de dar valor ao que somos para darmos valor só à ilusão do ser superior.
Ser superior será sempre uma eterna ilusão porque a nossa mente sempre vai criar um nível acima - e alguém sempre estará nesse nível acima -, por natureza nós somos insaciáveis por mais. Mais do que seja: material, espiritual, intelectual, emocional. É o que nos faz evoluir e isso é bom.

Mas há uma armadilha... Que é a de nunca nos darmos valor a menos que os outros vejam que estamos acima de alguém. Deixamos o nosso valor ser dado por terceiros, n por nós, e para além disso ser dado através da subjugação de um segundo...
Por isso é uma afronta tão grande para um homem cheio de teorias patriarcais da sua superioridade, que uma mulher só seja tão humana quanto ele. E pior... Que os outros vejam que ela é tão humana quanto ele.”

Muitos homens já têm feito o seu caminho de cura, já sentiram dentro de si que alguma coisa não está bem e se dedicam a olhar para dentro para procurar o que está em desequilíbrio para retomar a harmonia, a paz interior, a auto confiança a validação que vem de si mesmo e não do outro homem. Voltam a conectar-se com a sua essência de amor.

Eu sou mãe de um pequeno homem, e quero criá-lo para que seja auto confiante. Para que não espere validação de ninguém mais a não ser do seu próprio coração. Para que tenha um coração bom para ele mesmo e para os outros à sua volta. Que seja ele já um homem curado é uma das minhas prioridades. Deixo ao máximo que a inocência da infância dele não seja contaminada pela violência mostrada na mídia ou pelos comentários de “homem não chora”, ou “tens que ser um homem” que muitas vezes lhe são dirigidos por pessoas no dia-a-dia que sequer têm parte na criação dele. Deixo-o ser criança pura, amor puro durante o máximo de tempo possível que eu puder, porque sei que quanto mais ele tiver consciência de ser amor, mais na sua vida adulta ele será amor. E será amor seguro, sem ter medo nem dúvida de o ser porque para a sociedade isso pode ser visto como fraqueza da sua masculinidade. Amor é a força mais poderosa do mundo, ela só fortalece a masculinidade, torna-a sábia.


Durante muito tempo quis ter publicamente a conversa que tive com Henda no link que partilho com vocês. 
No dia em que finalmente o consegui, convidei Marinela Mendes e foi como realizar um sonho. Acredito nas suas palavras, e me guio nelas para educar o meu filho. Criarmos os nossos filhos tendo a sua essência de amor como prioridade é uma forma de diminuirmos a violência de género nas próximas gerações. O que temos mesmo que fazer não é trancar as meninas em casa por medo do que lhes possa passar na rua, como aconselha “Minha Senhora” do nosso querido Paulo Flores. Isto só lhes impede de encararem o mundo de frente e irem conquistar, direito de todo o ser humano. O que temos que fazer é ensinar mais amor e respeito aos nossos meninos, não procurar separar os géneros, para que eles vejam que as meninas são tão seres humanos quanto eles, tão capazes quanto eles, tão cheias de direitos e soberania sobre si mesmas quanto eles.

Aqui vos deixo o live… Disfrutem.



Com amor

domingo, 17 de maio de 2020

O lado oculto do ventre

Blood Moon, photo by Stephan Herb on Unsplash



Eu queria ter aprendido o que sei agora sobre o meu ventre quando era adolescente. 

Antes de entrar para a puberdade, eu mesma me ensinei o que eu achava que havia que aprender sobre o ciclo menstrual, sobre as mudanças que iam acontecer no meu corpo, sobre os novos artigos de toilette que ia precisar. Lembro de estar a estudar no Algarve nessa altura, e em vez de ir para o recreio nos intervalos das aulas, ia me refugiar do bullying e do racismo na quietude da biblioteca. O que é que eu gostava mais de ler? Tudo o que tivesse a ver com a puberdade, a adolescência e o sistema reprodutor feminino. Desde livros escritos para jovens até aos mais científicos, que diga-se de passagem ali na biblioteca da escola eram muito poucos, para além dos manuais de biologia. Estava na quinta classe.

O que todos esses livros não me ensinavam era o lado oculto do nosso ventre.
Ao aparecer a menstruação dois anos depois, chegaram e foram intensificando-se a cada ciclo os sintomas da endometriose a cada menstruação maior a dor. Tinha doze anos. Demorei dos doze aos vinte e sete anos a aprender o que guardava o meu útero para que se manifestasse daquele jeito, com tanta dor.

Aprendi que toda a condição física, tem uma raiz oculta que não está no nível físico. Todo o ventre tem uma existência oculta, que não se vê fisicamente, que não se ouve, mas se sente. O que há em nós que não se vê fisicamente, não se ouve, mas se sente? Os nossos sentimentos, as nossas emoções e os nossos pensamentos.

O ventre é o lugar onde se arquivam os nossos sentimentos e emoções. Também se arquivam os resultados dos padrões de pensamento que temos em relação à nossa condição feminina e à nossa sexualidade. Também se arquiva toda a nossa energia criativa e sexual. Também se arquivam memórias e informação de ADN.

Quando um ventre grita por cura, ele dói. Quanto mais intensa for a dor, maior é a profundidade do que é necessário curar. Carregamos no nosso ventre memórias, sentimentos, emoções, padrões de pensamento bons e maus, nossos e das nossas ancestrais. Estamos ligadas às mulheres da nossa família, às mulheres que nos antecedem pela energia dos nossos ventres que criaram uma e outra e outra.  E de ventre em ventre a história da existência dessas mulheres vai ficando escrita. Cada ventre que nasce, nasce com a sua história para escrever, mas carregado já de muitas outras histórias dos ventres que vieram antes dele, acumulando nele felicidade, saúde ou trauma e dor.

O meu ventre é um dentre milhares que carrega trauma e dor. Não é incomum a maior parte dos nossos ventres carregarem trauma e dor pesados e acumulados de geração em geração, pois como mulheres africanas passamos por muito. As mulheres que vieram antes de nós aguentaram muito. Muita dor, muita violação, muitos filhos, frutos dos seus ventres, roubados ou assassinados, muitos amores rompidos, muitos ventres traídos, muita subjugação, muita opressão, muita perseguição, muita mutilação, muita escravidão… São memórias que nos marcam por gerações a fio e devem ser curadas. O objectivo é aliviar a carga desses ventres para que a geração que vem a seguir venha mais leve para seguir o seu caminho neste mundo, sem ter que curar toda uma linhagem de ancestrais que não puderam fazer o trabalho de cura, mas cujas almas clamam por cura e liberdade. 
Essas ancestrais estão dia a dia connosco nos sussurrando, nos guiando, nos protegendo, nos orientando para que façamos o caminho da cura. Só depois de fazermos o caminho da cura conseguimos então estar livres para usarmos o poder criativo dos nossos ventres e manifestar a nossa missão no mundo. Porque também o ventre é o lugar da criação, o lugar onde reside toda a energia que temos para criar a nossa realidade.

A energia criativa, a energia do nosso ventre, fica estagnada, fica fraca ou fica intensa demais quando temos muito trauma arquivado. E quando ela fica desequilibrada ela acaba causando um mau funcionamento desses ventres e aí surgem as dores, as endometrioses, os miomas, os quistos, os ovários policísticos.

As medicinas tradicionais milenares, como a chinesa, têm o cuidado de ver o nosso corpo como um todo e não negligenciam o nosso sistema energético. Têm todas um conjunto de práticas regulares para adicionarmos ao nosso estilo de vida, que nos ajudam a manter o nosso sistema energético a funcionar bem, para que se promova boa saúde para os outros sistemas do corpo físico. O sistema energético circula pelo corpo como o sistema sanguíneo, e pelo sangue ele leva saúde e equilíbrio a todos os órgãos. Quando o nosso sistema energético está em desequilíbrio, a nossa circulação de sangue que oxigena, renova células, limpa toxinas, dá energia, movimento e actividade ao nossos corpos entra em desequilíbrio também. A distribuição de nutrição para os nossos órgãos não é ideal, eles começam a desempenhar mal as suas funções, a produção de hormonas entra em desequilíbrio e depois ouvimos que doenças como a endometriose, os ovários policísticos e os quistos e miomas têm a ver com desequilíbrios hormonais. Mas que também existe uma predisposição genética para elas… Também existe uma memória genética para elas… Também existe informação no ADN que nos predispõe a elas… Também existem memórias que passam de geração para geração que nos predispõem a elas… Também existem memórias que passam de ventre em ventre que se acumulam, que são demais para aguentar, que já estão tão graves a nível energético que se começaram a manifestar a nível físico.

Antes do nosso ventre criar, é bom o nosso ventre curar. Quando um ventre se cura, ele cura também a todos os outros ventres que o antecederam, pois estamos todas as mulheres da mesma linhagem ligadas pela energia dos nossos ventres. Quando uma mulher se cura a si mesma ela cura também todas as mulheres que a antecederam. Quando uma mulher se cura a si mesma ela liberta de traumas todas as mulheres que a antecederam e todas as mulheres que virão do seu ventre depois dela. Ventres têm energia de cura, de conexão de criação.

Esse era o lado oculto do ventre que não me contavam os livros na biblioteca. Essa é uma sabedoria que uma mulher conta a outra, que uma mãe conta a uma filha. É sabedoria que nos foi obrigada a calar, e oprimida, e também essa opressão faz parte daquilo que devemos curar. O calarmos e escondermos sempre tudo aquilo que diz respeito ao que dói os nossos ventres, por medo de vergonha, por medo de julgamento, por medo de exposição.

Essa é sabedoria que deve passar de mulher para mulher, para que nos possamos curar. E só nos vamos curar abrindo-nos umas para as outras, deixando a sabedoria fluir. Não retendo-a. Precisamos de muita cura. Precisamos nos abrir, falar, escutar com carinho e sem julgar, acolher, amar. Amar-nos umas às outras. Já sofremos demasiado por nos forçarmos a calar a nós mesmas e calarmos umas às outras.

Deixem a sabedoria fluir… Há segredos ocultos que livros não revelam, só corações abertos o fazem.


domingo, 10 de maio de 2020

Nós Seres Humanos


Lindos, complexos seres deambulando pela terra, a maior parte do tempo perdidos em relação a algum aspecto da nossa vida, seja ele profissional, pessoal, amoroso, familiar.
Uma das coisas que nos deixa bem perdidos são as nossas relações. Sejam elas de que tipo forem, elas são difíceis de construir, de manter, de recuperar, de acabar. E muitas vezes depois de as acabarmos elas ainda se alongam pairando nos nossos pensamentos ou corações durante o tempo que tiverem que ficar.

Enquanto isso somos inundados com dezenas de artigos em revistas, com palestras de outros seres humanos, a prometerem-nos fórmulas de como fazer as nossas relações funcionarem - que é tudo o que queremos. Conselhos de amigos e familiares nos dizem o que está certo e o que está errado nas relações, o que devemos aceitar e o que não, nós mesmos desenhamos nas nossas cabeças “a relação ideal” e tudo aquilo que sai minimamente desse padrão já não é aceitável para nós. Posicionamo-nos de uma forma e dali não sairemos. A relação ou a outra pessoa é que tem que fazer o match, a correspondência connosco e com as nossas expectativas para estarmos satisfeitos.

Não sei se há um tipo de relação mais difícil que outra. Se as de trabalho, se as familiares, se as amorosas, se entre amigos. Sei que sempre,em algum momento, elas se complicam. Sei que nunca são um mar de rosas estável, sei que dependendo de todas as variantes dos seres humanos nelas envolvidas, quando esses seres humanos não se conhecem a si mesmos - e se conhecer é um trabalho de vida -, não se escutam a si mesmos nos momentos em que atravessam para poderem interpretar como estão a reagir à travessia desse momento, não se compreendem com compaixão, e quando não fazem tudo isso com o outro ser humano com quem têm uma relação, as coisas se complicam.

Longe de mim querer dar fórmulas… Nunca haverá uma fórmula para uma relação perfeita, na minha opinião. Nós somos dinâmicos e estamos em constante mudança. Até o que eu disse no parágrafo anterior deve ser constantemente analisado e actualizado. Para além de sermos diferentes uns dos outros, nós somos diferentes ao longo da vida. As nossas etapas na vida nos mudam, os acontecimentos da nossa vida nos mudam, os aprendizados da nossa vida nos mudam. Não somos sempre lindos e maravilhosos, temos defeitos e temos momentos de não sermos as melhores pessoas, e me atrevo a dizer que temos direito a esses momentos também.

Acho que estarmos sempre abertos a aprender e a novas perspectivas ajuda muito. Aprender é observar, analisar, escutar activamente, reter o que se observou, analisou, escutou e utilizar de forma inteligente quando necessário. Acho que olharmos para as relações também como um constante aprendizado, sem as darmos por garantidas, tem um valor enorme. Isso não vai impedir que os choques apareçam. Eles vão aparecer sim, a qualquer momento vamos fazer algo inesperado, por qualquer razão que vai desestabilizar a relação, e está tudo bem! A sério, está tudo bem, ok?

Os nossos erros são as mais lindas e puras formas de se aprender. Não se aprende, não se evolui se não pelo erro. Tentativa e erro é o caminho natural para o sucesso. Ou achamos que o primeiro avião construído deu logo certo, voou por aí céu a fora? E ainda depois de dar certo para ele evoluir aos tipos de aviões que conhecemos hoje, cargueiros, caças, comerciais, muitos erros foram cometidos, muitas adaptações foram feitas, muitas renovações, muitas inovações. Com relações, o mesmo! São dinâmicas, não há estagnação. São um constante projecto em crescimento, e para que elas fiquem mais fortes, mais sólidas, para que se estejam sempre actualizadas, preparadas para os novos tempos e as novas pessoas em que nos transformamos, é preciso errar. É preciso cometer erros sim. E depois de os cometer estar pronto para pedir desculpa. E depois de os vermos serem cometidos connosco e termos as nossas emoções alvoroçadas, respirar e observar, analisar esse erro, conversar com compreensão, perceber de onde ele veio e procurar não o culpado, mas a solução. Isto exige um tal nível de abertura, entrega, humildade e respeito pela vulnerabilidade nossa e do outro, que só se atinge praticando. Também não vem do nada. O abrir o coração doído para entender o erro do outro, ou abrir o coração para pedir perdão pelo erro, não é tarefa fácil. Mas é tarefa possível, é tarefa praticável, como todas as tarefas por que tivemos que fazer na escola que nos deram carga até finalmente entendermos para passarmos de classe. Se estivermos focados na busca da solução e não do culpado, chegamos lá. Porque o que é que acontece depois de encontramos o culpado? “A culpa é tua!!” E ponto final, acabou. Se resolveu quê? Quando vamos à procura da solução e estamos abertos para trabalhar nela, aí sim passamos de classe. A relação sobe a um patamar novo, evolui e se fortalece.



E assim no meio de tanta tentativa e erro, chegamos aos Boeings das nossas relações e vamos ainda mais além para as naves espaciais. Dentro de nós, ter essa vontade de melhorar constantemente é muito importante. Porque quando temos a vontade, nos dispomos a fazer o que for preciso para melhorar.

Mas aprendi esta semana ainda mais sobre seres humanos, as suas variações, como elas afectam as suas relações e como podemos trabalhar nisso. Observei uma mesma situação entre quatro pessoas em que simplesmente as reações à mesma coisa foram completamente diferentes. Também observei como a euforia nos dá força para nos predispormos a fazer coisas que num estado de maior calma e racionalidade não faríamos. Há realmente uma vibração mental diferente quando estamos num estado de euforia, só seguimos a onda. E todos nós somos apanhados em estados de euforia de vez em quando, faz parte das vivências dos seres humanos. Nem sequer precisamos de substâncias nenhumas para isso. As nossas sessões de estigas são um gatilho maravilhoso para a euforia. Às vezes acabam bem, outras acabam mal, o que é preciso é saber que nos deixamos levar pela onda da euforia e consertar o excesso cometido. É preciso ter cuidado com o estado de euforia, mas também não o oprimir, nem o condenar. Ele faz-nos bem, rimo-nos, relaxamos, segregamos endorfinas, como seres humanos precisamos disso, precisamos de sair do constante estado de controle e cuidado. Só que quando as coisas dão errado também precisamos nos compreender.

E neste estado de euforia em que estavam estas quatro pessoas de repente cai uma bomba proporcionada por uma das pessoas que obviamente puxou um de mão e pelas diferentes reações pôs freio à alegria da euforia. Um pessoa entrou em choque, outra viu o meio termo, outra manteve-se em estado de euforia e viu uma forma de continuar a brincadeira e deixar a bomba para ser abordada com maior cuidado noutra altura, e a que largou a bomba ficou em suspense.
Quatro pessoas, uma situação, uma “bomba”, quatro reações. Lindo! Simplesmente seres humanos sendo seres humanos, cada um do seu jeito… O importante ali foi esses seres humanos terem se lembrado que cada um tem uma dinâmica diferente, mas que ainda assim eles se importam uns com os outros.

Cada um de nós tem uma forma de estar na vida diferente, se expressa e expõe de forma diferente, tem tempos diferentes, entende a vida, os sentimentos, as situações, as relações de forma diferente… E na verdade, só dá mesmo para fazermos outra pessoa entender como nós entendemos e sentimos as coisas, não para fazê-las entender e sentir do mesmo jeito que nós. Somos demasiado cheios de vivências, ADN, e informação astrológica que nos dão a beleza da diversidade, para termos mesmo a ambição de querer tornar-nos todos iguais. Simplesmente não tem como na igualdade haver equilíbrio, porque não há polos distintos para criar o equilíbrio e a harmonia. A diferença é necessária, é bela.

A diferença cria os choques, mas a compreensão da diferença ajuda a aprender com os choques e a passar de classe.

domingo, 3 de maio de 2020

Feliz Dia da Mãe

Eu nunca me lembro das efemérides.
Nunca... E quem me ama, vai ter mesmo que me amar assim.

Acabei de receber uma mensagem a dizer "Feliz dia da Mãe" e disse "oh! Mais uma efeméride de que nunca me lembro." Eu mesma, mãe também. "Feliz dia da mãe!"

E nisso acabo por começar a ver em retrospectiva essa maternidade.
Essa coisa bonita que falamos todos os dias, semanas e anos sobre as maravilhas que são ser mãe, já me cansa... Nem quero mesmo receber  os poemitas do costume sobre "mãe és o meu céu, meu sol, meu mar, a que me deu a vida". Aaf... Já eu fiz isso à minha mãe, não dou para mais.

Por mais que ser mãe seja lindo, e é, ser mãe é real.
É real mesmo, e nem todas nós começamos com o pé direito como se nos pinta. Ser mãe é uma responsabilidade para a vida toda e quando ela nos cai em cima, dependendo das nossas circunstâncias, da nossa preparação, do nosso estado mental, não é uma boa notícia para todas nós. Ser mãe não sai assim tão fácil para nós como a sociedade e os contos nos fazem acreditar, que logo que descobrimos que estamos grávidas são só rosas e morangos e uma felicidade sem fim. Algumas de nós precisam só ter um atraso de 3 ou 4 dias na menstruação e já entramos em pânico: vemos a vida toda a passar-nos à frente e já temos mais um problema nas mãos, batata quente para saber como resolver.
"Saraaaa!! A minha menstruação está atrasadaaaa!!!" -Quantas vezes já recebi essa mensagem...! "Calma..."- digo. "Quanto tempo está atrasada? Começa a preocupar-te a partir da segunda semana de atraso, até lá relaxa e espera ainda..."
São corações disparados, mentes a mil, preocupadas com como a vida vai mudar, os problemas e pessoas que terão de enfrentar, com os planos, com as finanças, com a carreira, com os estudos, com o filho anterior que ainda não saiu das fraldas, com o ter que parir em Angola, com como o pai vai reagir... Incontáveis preocupações para mulheres, casadas, solteiras, com filhos, sem filhos, numa relação estável, sem estar numa relação...

A vida acontece, e é real. Ser mãe não é um dom nato para ninguém. Ser mãe é um estado de abertura mental, que exige um milhão de habilidades que vão sendo aprendidas e aperfeiçoadas na hora, no momento exacto em que elas precisam ser utilizadas. É preciso extrema perspicácea, rapidez de pensamento, lógica, profundo uso da intuição (que muitas vezes temos que reaprender), perserverança, resistência, coragem, coragem, coragem!

Enfrenta agora a gravidez... O primeiro trimestre é supostamente o mais duro. Sabem que o nosso corpo combate o ovo fecundado a princípio? Pois é um corpo "estranho" dentro de nós, há outro ADN dentro de nós, a função do nosso corpo é por corpos estranhos para fora de nós. Por isso até que se habitue, nós temos sintomas que mimetizam doenças... Extremo cançaso que nos faz ir dormir, não é só porque esses ndengues fazem puxada constantemente, é também porque é quando estamos a descansar que o corpo se cura autónomamente. Os vómitos, são mais uma reacção do corpo de tentativa de expulsão do "corpo estranho", tonturas, azia, às vezes diarreia, há quem sinta sintomas de gripe. No geral nos sentimos mais doentes que grávidas. Umas abençoadas não sentem nada, noutras os sintomas são médios, noutras os sintomas são horrorosos, outras até ficam de cama. Em todas é suposto passar depois do primeiro trimestre, mas nem a todas isso acontece, a muitas se estende por toda a gravidez. Experimentem então perguntar às mulheres que têm hiperemese gravídica, que não conseguem  pôr nada no estômago que vomitam logo tudo, e se vêm a emagrecer minuto a minuto a viver de medicação, o quão lindo é ser mãe.

Muda corpo, muda mente, muda alma. Mudanças constantes, rápidas, violentas pela sua rapidez e intensidade e nós estamos aqui a vivê-las. Flutuações horminais que nos bombardeiam desde o primeiro dia de gravidez até dois anos depois do parto que não nos permitem nem saber quem somos. Não é coisa de "mãe és uma linda flôr!" é coisa de "mãe és uma guerreira da p***!" O trabalho mental, espiritual e físico que ser mãe exige faz-nos ter que evoluir à força do cinturão branco até ao décimo Dan do Karaté (e acreditem que muitas de nós aprendem mesmo a lutar físicamente "através" dos filhos) em muito pouco tempo.
Toda a meditação, interiorização, nutrição, exercício, afastamento de energias, situações e pessoas negativas que seja necessário fazer para nos fortalecermos, estarmos equilibradas, aprendermos e cumprirmos essa tarefa é crucial. Mães precisam de tempo para elas, de outra forma não podem ser mães.

Mães precisam cuidar de si, antes de cuidarem dos outros. Mães precisam também poder ter os seus momentos de meditação e de loucura, mães precisam poder fazer xixi sozinhas. Isto ajuda as mães a estarem equilibradas, a poderem organizar as suas ideias, emoções e sentimentos.

Este texto dá-me espaço para falar de parto? De pós parto? Da criação das crianças? De tudo que é ser mãe? Quero rir... Para não chorar, e chorar de rir! Quero que se saiba tudo o que é ser mãe, mas um texto, um poema, um dia, não dá! É violento, é real e é lindo! Como pode?!!

Depois de tanto desconforto durante a gravidez em que temos que descobrir mil e uma maneiras de lidar com eles, porque nem tudo funciona para todas, temos que descobrir o que funciona para nós em específico e para isso temos que saber nos sentir e nos observar, vem parto.
Vem parto...! Vem parto que hoje em dia não é pensado para a  mãe, mas sim para quem assiste a mãe, é decidido com muito pouca opinião de quem o vai fazer - quem faz o parto é a mãe - e muito mais decisão de quem o vai assistir, e dos familiares adjacentes. As perguntas "o que é que sentes que deve ser feito, como desejas que seja o parto, dás-me licença para...?" são tão poucas vezes feitas que as mães nem mais fantasiam sobre isso. Nem têm noção que têm direitos, nem têm noção do seu poder de decisão, nem se lembram que também os seus desejos contam, que a sua intuição as guia, não têm o controle e soberania pelo seu próprio parto. "Ah... só quero que nasça saudável", passamos por tudo o que tivermos que passar, desde as contracções até à violência obstétrica, para que tudo fique bem para essa criança.

Pensamos sempre no parto como o fim da gravidez e o começo da vida externa do bebé. E, tufas! Esquecemos de nós! Todas as atenções viradas para o bebé, todo mundo se esquece de nós e de como precisamos recuperar a mente, o corpo e alma e todos os cuidados que isso inclui.
A gravidez não acaba no parto, o corpo, a mente e a alma passaram por todo um processo durante a gravidez que agora tem que ser revertido físicamente, e quanto a espiritualmente e mentalmente temos que continuá-lo, passar para a próxima fase "o quarto trimestre". Quando digo revertido fisicamente, é só mesmo a superfície da coisa, porque quer voltemos "à forma" quer fiquemos maravilhosas deusas curvilíneas e voluptuosas, esse corpo "não te pertence mais!" Nunca mais será o mesmo. E mentalmente é preciso saber encaixar isso de forma saudável.

Emocionalmente o dar de mamar é obra! Ninguém disse que na hora de dar de mamar à criança ia sentir o peito a estourar como fogos de artifício e o leite começar a jorrar antes mesmo do bebé fazer "nhée" de fome. Ninguém disse que durante as relações sexuais, sim, o leite ia sair expontaneamente, ninguém contou que ao tomar banho, com a água quentinha as mamas metralhariam leite para todas as direcções para onde se virasse.

Ninguém disse a muito boa mãe que por fosse qual fosse a razão misteriosa ela não teria leite... E quando isso acontece, em vez de se dar tempo, espaço e serenidade à mãe, porque a descida do leite depende muito de ela estar, relaxada, descansada, bem emocionalmente, vem mãe, vem, tia, vem vizinha, prima, avó, médico, enfermeiro, o pessoal da farmácia, o jacó da cunhada, toooodo mundo dar palpite sobre o que é que ela tem que fazer, como o corpo dela deve agir, sobre a capacidade dela de ser mãe, lamentar e desanimar a mulher. Se pudesse fuzilar toda essa gente...

E levanta infindáveis vezes à noite, "não esquece de pôr essa criança para arrotar"; e passa um dia inteiro de pijama; e tenta manter toda a casa, a si mesma e ao bebé organizados e limpos; e lembra do marido que ficou esquecido ali no meio de toda essa gestão e já começa a fazer ciúmes; e vem chefe, que acha que já deve te pôr falta na reunião passados 10 dias da cesariana, mesmo com a tua licença de parto; e lembra de completar os trabalhos da universidade antes que acabe a data de entrega; e recebe eternas visitas que em vez de ajudarem querem ser servidas; e acata as ordens do pediatra que mantêm criança viva, mas com que a criança não colabora de maneira nenhuma; e gere mais trinta milhões de palpites não solicitados sem mandar ninguém a lado nehum porque é falta de respeito; e gere as emoções que te causam todas aquelas frases que põem em questão a tua materniade...

E isto é só a superfície...
É um universo infinito a maternidade. Um buraco negro para onde nos atiramos e seja o que Deus quiser e a Deusa ajudar. Ser mãe não vem com manual de instruções, mas é possível sermos mais empáticas umas com as outras e fazer durante anos antes da gravidez, durante a gravidez, na criação das crianças, a conversa sobre ser mãe ser uma de abertura, de falar das realidades, de cultivo de sororidade e de entre-ajuda entre mulheres. É possível eliminarmos os medos e as ansiedades, os taboos e preconceitos, a fofoca e julgamento para podermos ajudar mais as mulheres a fazerem essa caminhada. Se engravidou quando não devia, se engravidou de quem não devia, se não está a lidar bem com a maternidade, se não quer estar grávida, nem criar essa criança, vamos acolher essa mulher. "Ela nessa situação, podia ser eu", é o que podemos pensar. Porque nenhuma de nós é imune às situações complicadas da vida.
Há um mundo todo de questões que se está a passar pela mente dela que tem um peso que ninguém pode imaginar, nem carregar por ela. O nosso dever é ajudar a aliviar a carga, não pesar mais, não julgar mais, não fofocar mais, não trazer mais negatividade, não trazer mais dúvidas. Não trazer mais lágrimas, mas deixar fluir dentro de um abraço sincero de coração aberto e enxugar as que já existem.

Há tanto desafio no ser mãe, tanta luta interna e invisível, que temos que nos lembrar que aquilo que uma mulher precisa é informação, respeito, compreensão, serenidade e tempo para ela poder encaixar tudo que é preciso, tomar as decisões que são melhores para ela e para a criança dela, que são diferentes das decisões que são melhores para nós e para as nossas crianças.

No fim de tudo, esse trabalho todo, esse sacrifício todo, essa loucura toda desaparece, mas desaparece mesmo, e toda a energia para aguentarmos mais não sei quantas doses disso quando aquela criaturinha nos sorri sem dentes, nos dá um abraço quentinho, um beijo de baba, um "te amo mamã" que nos faz sentir esse amor maior que todas nós babamos em todo o lado descontroladamente.



Ser mãe é a drena mais louca em que nos metemos em toda a nossa vida.

Feliz dia da mãe



domingo, 26 de abril de 2020

Mas é o TEU corpo



Acreditas que outra pessoa possa conhecê-lo melhor que tu?

É mesmo que só através de ciência descobres se estás doente ou não?

Como pode ser que seja a app a “controlar” a tua menstruação?



Lembras quando a mãe diz “é meu filho e eu é que sei”? Não é só porque ela é a legítima autoridade a tomar as decisões por esse filho, mas porque todos nós respeitamos o instinto de mãe quanto aos filhos. Elas sabem, farejam, sentem, pressentem. E toda a sociedade respeita isso, porque esse ser humano viveu dentro dela durante a gestação, viveu dela até ser autónomo. Há uma ligação muito forte entre a mãe e o filho.

Se há essa ligação tão forte entre dois seres humanos, porque não há entre um ser humano e o seu próprio corpo? Como pode não haver? Te digo, existe.
Existe, mas a racionalidade de que tanto nos alegramos e alegamos como humanos para nos diferenciar de outros animais, é tão sobreposta a tudo aquilo que é instinto e sentir nosso que desconectamos o nosso cérebro do sentir o nosso corpo e os momentos do nosso corpo. O cérebro tem essa capacidade de escolher aquilo que é importante para nós e aquilo que não é. Quando consideramos uma coisa não importante, o cérebro vai arquivá-la ali num cantinho. Se era uma habilidade, passamos a deixar de tê-la. É o que nos acontece quando deixamos de praticar alguma actividade, quando deixamos de usar a nossa criatividade. Desenhar por exemplo. Eu costumava desenhar lindamente. Mas deixei de o fazer, há anos que não desenho. Quando pego num lápis para fazer um desenho, seja por que motivo for que me obrigou a desenhar algo, faço qualquer coisa parecida de com desenhos de quarta classe. O que é completamente diferente das obras artísticas que costumava fazer até aos meus vinte anos, por aí. Desenhar deixou de ter importância e prioridade para mim, outras coisas se puseram à frente na vida. E agora se quisesse voltar a desenhar teria que voltar a activar o meu cérebro para isso. Voltar a exercitar a mão, voltar a me lembrar ou reaprender as regras e técnicas de desenho.

O mesmo aconteceu com o nosso conhecimento do nosso corpo. Durante o tempo de gestação e primeira infância o nosso corpo e a nossa voz é tudo o que temos. Não sabemos pegar, não sabemos escrever, não sabemos mais coisa nenhuma, a não ser sentir o nosso corpo, e as sensações que o invadem, que nascem de dentro dele… E comunicá-las, ainda não através do diálogo, mas através da vocalização. Ao crescer, é tanta coisa que aprendemos que outras coisas vão se pondo como prioridade e muitas de nós se desconectam do seu corpo. Aprendemos a seguir instruções externas, pois delas depende a nossa sobrevivência na sociedade. Não é como no reino animal, que é preciso escutar, cheirar, observar, sentir até o tremor da terra para se saber se o outro animal vem a galopar, se a rastejar, e de que tamanho ele é. A sobrevivência depende dos instintos primitivos, do uso dos nossos cinco (e até do sexto) sentidos. Na sociedade moderna, utilizamos pouco estes cinco sentidos para nos observarmos, para nos sentirmos. E de certa forma, observar-nos a nós mesmos traz-nos medo. Por isso tanta gente tem medo de ficar sozinha consigo mesma, tem medo de meditar, prefere que haja estímulos externos constantes a vir ter com ela para que possa não olhar para si mesma.

Mas sabem o que é lindo? É que conhecermo-nos, sentirmo-nos ouvirmo-nos a nós mesmas, não é nada que nos vá trazer malefícios… Muito pelo contrário, vai trazer-nos maior consciência de nós mesmas, uma melhor convivência connosco mesmas, uma harmonia maior e soberania sobre o nosso corpo. O poder que temos sobre nós mesmas se expande. O controle do nosso corpo volta para as nossas mãos. É simplesmente porque estamos tão desconectadas de nós mesmas que sentimos medo do trabalho de parto. Quanto mais uma mulher se conecta consigo mesma, mais ela perde o medo desse momento que para todas pela primeira vez é desconhecido. Quanto mais uma mulher se observa, se sente e se ouve, melhor ela sabe tomar decisões para si mesma.

O observar e sentir o nosso ciclo menstrual, e não o silenciá-lo com pílulas anticoncepcionais dá-nos um poder enorme sobre a nossa fertilidade, e consequentemente sobre as decisões que tomamos à volta dela. Muitas vezes recebo mensagens de mulheres a dizerem-me que não conseguem engravidar que me pedem dicas do que fazer. E eu, com toda a sinceridade, fico perdida. A minha primeira reacção é “eu não conheço o teu corpo”, sem falar que não sou mesmo uma profissional de fertilidade assistida. Mas o que há de muito comum entre estas mulheres muitas vezes é que tampouco há uma relação boa entre elas e o seu ciclo menstrual. Para engravidarmos, todas dependemos do nosso ciclo menstrual. E se não o conhecemos bem, como podemos fazê-lo de forma natural e consciente? Ou a gravidez acontece, puft, por acaso, ou realmente se houver alguma questão que complique a gravidez, ou simplesmente não houverem relações sexuais na altura certa, não há gravidez. Nós só estamos férteis durante mais ou menos seis dias por ciclo. Só seis dias. Só seis dias. E há UM que é o pico de maior probabilidade de fertilidade. E este dia, acreditem: sente-se! É um dia de maior excitação, +e um dia em que a pele está com uma sensibilidade e receptividade mais aguçada, é um dia em que o próprio útero contrai levemente, parece que vibra ou que há uma sensação leve de formigueiro lá dentro… É um dia em que o instinto nos diz “hoje é dia em que engravidas”, num rugir que vem das profundezas de uma caverna. Mas é uma linguagem tão sutil, que basta estarmos preocupadas com qualquer outro assunto que não vamos perceber. E na vida moderna estamos constantemente preocupadas com bastantes outros assuntos.

Sentirmo-nos é tão simples quanto… Sentir. Não tem outra explicação, sentir é sentir. Como sentimos as outras necessidades fisiológicas do nosso corpo, podemos nos habituar a sentir os avisos do nosso ventre. Observar-nos durante o nosso ciclo e ter um caderninho para fazer anotações. Depois de uns 3 ciclos, de só observar e anotar, fazer comparações, olhar para padrões: quando foi que senti vontade de chocolate, quando foi que tive mais vontade de fazer sexo, quando foi que a minha pele ficou com mais acne, quando foi que o meu peito se sentiu e se viu mais cheio, quando senti os mamilos sensíveis, como foi a dor da menstruação, ou não houve dor, o que tenho comido que me faz ficar inflamada, como está o meu nível de energia em cada fase do ciclo…

Observando os nossos padrões, sentindo os nossos cheiros naturais, as nossas texturas, sentindo como mudamos durante o nosso ciclo, somos capazes de nos saber tão bem que identificamos imediatamente quando algo sai do normal. Quando sai do normal, quando há uma mudança, podemos estar perante uma doença, ou uma gravidez... Mas sabemos, de certeza que sabemos, e é logo que acontece.

domingo, 19 de abril de 2020

Prendadas


O Incontruztruz, no Instagram fala muito sobre isto! E adoro o trabalho que Lurine, Vanda, Micaela, Meninha e todas as convidadas que por lá passam têm estado a fazer nos IG’s lives delas para todas as mulheres palops.

Tenho 30 anos e cada dia me admiro mais comigo mesma. Me admiro mais com o facto de apesar de ter sido sempre uma pessoal fiel a mim mesma, na verdade nunca o fui a um nível profundo…Se tivesse sido não estaria só agora com 30 anos a descobrir coisas que já nasceram comigo, que são a minha essência e sempre andaram por aqui a dar o ar da sua graça aqui e ali, mas que por medo de ir contra a maré não vivi, não fui, não fiz, não me conhecí!

Somos preparadas não só pelas nossas mães e famílias, mas por toda a sociedade com os seus enormes programas de condicionamento mental de brinquedos domésticos para meninas, cores específicas para meninas, debates na tv e rádios no dia da mulher, letras de múscias e afins de como as mulheres estão a “perder” as suas virtudes, porque antigamente todas sabiam cozinhar e pregar um botão. Todas serviam ao marido. De como devemos ser submissas e obedientes, como devemos nos apresentar ou vestir para ir à casa do sogro, das comidas que devemos saber fazer para agradar a sogra. É um manual completo de “como ser mulher” que recebemos de todos os lados, que realmente nos parece o mais natural seguir aquelas diretrizes todas. Não queremos ser as más mulheres, e lá no fundo só queremos que gostem de nós, então toca a nos moldarmos para sermos aceites e gostadas, principalmente no seio familiar do cônjuge. O treinamento já começa com 7 anitos… Nãaao, mentira, estou no gozo! O condicionamento já começa quando escolhemos rosa para a fêmea que está ainda no nosso ventre. “Estica bem esses lençóis porque quando tiveres o teu marido, ele não fica nada contente se não souberes fazer a cama!”; “Tens que saber esfregar as golas das camisas do teu pai, para saberes esfregar as do teu marido”; “Se não souberes cozinhar, lavar e arrumar não sei o que será da tua casa” é de facto espetacular.

Nessa caminhada lá nos formamos santas (defino santa como aquela que desconhece a sua sexualidade, vocês sabem do que estou a falar) moças prendadas! Uma maravilha. Nem me vou meter pelo campo do desconhecer a sexualidade, porque só isso é assunto para um outro artigo inteiro. Só quero falar mesmo de nós, moças prendadas!



Xeh! Estamos todas prontas, sabendo lavar golas de camisas e fazer bolsar bebés. Sabemos muito bem, antes de o sermos, sermos esposas e mães. Sabemos! Muito bem!

Mas sabem o que não sabemos? Sermos nós mesmas, sabermos falar a nossa língua a nossa verdade. É! Antes mesmo de sabermos quem somos e como somos, e como sermos nós mesmas, já sabemos ser esposa e mãe. Antes de sermos verdadeiras connosco mesmas, já juramos bandeira ao ser correta e a certa com e para o mundo inteiro. Carroça à frente dos bois! E esqueçam o conhecermos e dominarmos os nossos talentos… Que é isso de talentos?

E depois como vou ser esposa e mãe sem saber o que eu sou, como sou e o que fazer para ser eu?

Somos réplicas, robots que funcionam da forma que foram ditos para funcionarem e que depois crasham, dão pane no meio da experiência marital ou materna. Umas seguem a empurrar assim mesmo: “casamento é mesmo assim, maternidade é mesmo assim: sacrifício!”- conformam-se e vivem vidas infelizes. Infelizes consigo mesmas, às vezes são doces e tristes, outras frustradas e violentas com os filhos enchendo-os de porrada e berros (replicando um comportamento já antes vivido por elas mesmas, justificado como educação), como escape das suas frustrações e traumas de que sequer têm noção. Outras rebelam-se, fogem do matrimónio e às vezes também da maternidade (lembram-se de todas as mulheres que julgamos porque abandonam os filhos com alguém, ou no hospital, ou no caixote do lixo, ou debaixo de um carro?), procurando algo que muitas vezes nem sabem o que é, só sabem que não se sentem bem ali, que há uma confusão mental profunda a acontecer dentro delas, que é demasiada pressão para uma só pessoa, que essa pele precisa ser arrancada do seu corpo porque sufoca, pica e corta por dentro, faz-nos sangrar, mas ninguém vê.
Por sorte um punhado de nós está a buscar o seu interior, está a ouvir a sua intuição, e aí começa uma caminhada bonita, mas também difícil e muito dolorosa de autodescoberta e autoconhecimento, descrita no livro de Élia Gonçalves “O Mito de Ophídia”.

Esta caminhada pode também ser feita dentro do matrimónio. Mas requer uma flexibilidade, abertura, e um nível de compreensão e liberdade a que poucos, muito poucos dos nossos homens foram ensinados a ter para com as mulheres, para com as “suas” mulheres! Exige mudanças fortes e muito trabalho em equipa dentro do casal, o que é ainda mais delicado quando há filhos.

Eu acho que seriamos melhores mães e esposas, se quiséssemos ser mães e esposas, se nos conhecêssemos bem, se fôssemos nós antes de sermos mães ou esposas. Se nos explorássemos por dentro e por fora, se conhecêssemos as nossas capacidades, limites, inclinações e talentos completamente, se nos permitíssemos sem medos, sem julgamentos, sem timidezes expandir-nos em cada área de ação que sentíssemos desejo de expandir, se soubéssemos como agimos, porque agimos, e se queremos mudar a forma de agir, o que fazer para mudar. Se soubéssemos do que realmente gostamos, através de nos permitirmos explorar os nossos gostos sem nos limitarmos porque ouvimos que falarmos a nossa verdade é errado, ou nos comportarmos segundo aquilo que verdadeiramente somos “fica mal”. Quase sempre adotamos para nós padrões de pensamentos e dizeres que são os de outros e não os nossos. Mas porque os ouvimos como doutrina durante tanto tempo e em tão crucial altura do nosso desenvolvimento que fica como nosso para sempre. Vestir amarelo, por exemplo, na altura em que eu era miúda, era uma estupidez e ficava mal a todo o mundo! E eu até gostava de amarelo. Mas demorei a começar a vestir amarelo, mesmo depois de crescer, porque havia o padrão comum que amarelo era berrante demais, não se vestia, ficava mal! E quem diz vestir amarelo, diz ser pilota de aviões, diz decidir não ser mãe, diz escolher ter um marido mas ser firme nas suas posições e arumentos, diz escolher dedicar-se com toda a ambição e garra a uma carreira e não à família e maternidade, diz ter o controle e soberania do seu corpo, diz ser dona das suas escolhas,  e todos outros dizeres sobre como devemos ser e agir que nos levam a ser e agir de acordo com essas regras, que nada têm a ver com o que somos e com o que aqui viemos fazer neste mundo.

Somos seres individuais, cada um com o seu propósito e seus talentos. Não é suposto sermos todas iguais nem fazermos a mesma coisa. Todas um exército escravo de manutenção doméstica e continuação da espécie. É suposto usarmos os nossos talentos para contribuirmos para um mundo melhor. Nem mesmo Deus quer que desperdicemos esses talentos, porque se quiserem pensar assim, quem nos os deu, afinal? Mas se não sabemos quem somos, como sabemos quais são os nossos talentos? Se nos formamos para ser esposas e mães e vamos estudar qualquer coisa que nos dê dinheiro exclusivamente para nos alimentarmos e termos um teto, e ainda assim isso fica insignificante depois que nos casamos com um homem, em vez de realmente desenvolvermos o nosso talento e vocação, só estamos a ser mais um robot, que vive mecanicamente sem dar a sua contribuição única, que só ela pode dar a este mundo.

Os nossos sonhos, são a nossa missão neste mundo. Atrevam-se a sonhar, e a perseguir e executar os vossos sonhos. Atrevam-se a deixar ouvir a voz interior, atrevam-se a conhecer-se de dentro para fora, o lado bom e o lado mau, a saber das vossas virtudes e daquilo que pode ser trabalhado para serem a melhor versão de vocês mesmas.

Jovens meninas, atrevam-se e acostumem-se a dar-se, ou a lutar por essa liberdade de primeiro explorarem-se a vocês mesmas, seja naquilo que for! Conheçam-se como ser humano, como mulher primeiro, antes de serem qualquer outra coisa que a sociedade vos diz que têm de ser. Explorem e desenvolvam os vossos talentos. Vão a fundo, expandam-se sem medo, conquistem o mundo! Porque é isso que traz sentido à vida. Todos, homens e mulheres estamos à procura do nosso propósito neste mundo e de dar sentido à nossa vida. Primeiro isso, depois o resto! O que não anula que o propósito e sentido de vida de muita mulher seja ser esposa e mãe. Se é isso, também vos encorajo a dedicarem-se com amor e perseverança! Mas há que saber que é realmente isso. Há que dizer “eu sou mãe, eu sou esposa nata”, com certeza, porque sabemos disso, porque nos conhecemos!

Deixem-se conhecer! E como diz o pessoal do Incontrustruz: “Vai viver, preta! Vais gostar!”

domingo, 12 de abril de 2020

O Sangue


Não por sofrimento, não por violência, mas por ritual. Um ritual se repete todos os meses no nosso ventre. O ritual de preparar a cama para a possibilidade de se gerar um novo ser. O ritual tem dois caminhos a seguir. O de gerar esse ser, e o de desfazer essa cama para fazer outra para próximo ciclo, que irá esperar a possibilidade de outro ser.
Assim.
Mês após mês... Talvez, a cada 28…

Quando se desfaz a cama se sangra. Esse sangrar durante anos foi considerado triste, mau, ligado a sofrimento, isolamento, repulsa, até mesmo nojo.

Tão mal interpretado é esse ritual, que deixamos de saber lidar com ele. Catalogamos como nojento e impuro o nosso corpo nessa altura. Silenciamo-lo com anti-concepcionais que falsificam esse ritual, ou que o suspendem por longos períodos de tempo.
Eu também o fiz... Eu também não o entendia. Eu também o ressentia. Ressentia e negava a minha própria natureza, negava-me como mulher. Mas o sangue sempre foi mais forte. Tão forte que ele gritava desesperadamente, fazendo-me retorcer na mais agoniante e incapacitante dor, todos os meses, para que eu voltasse à minha essência, que lá iria encontrar harmonia e o fim do sofrimento.

O sangue que escorre pelas nossas pernas a baixo todos os meses, que sai do nosso útero, não é um choro de um útero sofrido por não desempenhar o seu papel criativo de gerar um ser. É um ritual de purificação.

O sangue que desce do nosso útero em direcção à terra, vai em busca da Mãe Terra, para lá depositar aquilo que já não nos serve. Para nos limpar das nossas impurezas. Das físicas, das mentais, das energéticas, das emocionais.

Antes do sangue descer o nosso corpo reúne tudo aquilo que nos faz mal, passamos por uma espécie de catársis. Nos sentimos tristes, deprimidas, pesadas, sem motivação, irritadas com o mundo externo, chamadas a interiorizar-nos. Se ouvirmos esse chamado meditamos naquilo que já não nos serve mais e participamos activamente do ritual. De um ritual que é nosso, feito no templo que é o nosso ventre. Como podemos estar ausentes?
Podemos mesmo criar uma maior catársis. Estar conscientes de por a intenção para deixar sair aquilo que nos pesa, nos entristece, nos faz sentir nauseadas, nos põe para baixo.




Existem químicos a intoxicar-nos o corpo, vomitemo-los!
Existem energias negativas a poluir a nossa aura, enxotemo-las!
Existem emoções negativas a toldar a nossa mente, curemo-las!
Existem pensamentos negativos a formar padrões e a guiar as nossas vidas, mudemo-los!

Esta é a hora de nos purificarmos! É quando o sangue desce que temos mais poder para nos purificarmos internamente.
É uma oportunidade que só nós fêmeas temos, porque carregamos tanto do mundo, e carregamos o poder da continuação da nossa espécie, da renovação da nossa espécie. Todos os meses precisamos nos purificar, nos esvaziar um bocado mais da carga para continuar.

Quando o sangue desce, às vezes desce com desconforto, às vezes desce com dor. Às vezes com muita dor.
Quanto mais dor, mais força está esse útero a fazer para se purificar de feridas profundas que ele tem. Mais determinação ele tem para se curar, mais ele clama para que nós sejamos mais presentes de corpo e mente nesse ritual de purificação, para que vamos profundo adentrando em nós e exploremos aquilo que nos dói na alma, que nos marca, traumatiza, que passa de geração para geração, que trazemos das mulheres da nossa família que nos antecederam, que colhemos das experiências da nossa infância, que guardamos dos amores da nossa juventude. Foi, é assim com o meu útero. É assim com todos úteros.
Carregamos todo o peso de várias vidas! De várias mulheres.

Quando o sangue desce ele traz com ele todos os químicos tóxicos, todas as emoções negativas, todos os pensamentos negativos, todas as energias negativas, todos os traumas generacionais, tira-os à vez do nosso corpo, do nosso templo, e vai dá-los à Mãe Terra para que os recicle.

Quanto mais estivermos conscientes desse ritual, melhor nos purificamos.

Conectemo-nos ao nosso sangue. Pois ao amanhecer o dia após o final da descida do sangue, somos novas. Sentimo-nos revitalizadas, cheias de energia, criativas, felizes, de braços abertos para a vida! Respiramos um ar mais puro, somos puras, fomos purificadas.

domingo, 5 de abril de 2020

Pernas para o ar, cabeça na terra... Os nossos partos em tempo de Corona Vírus


Os nossos médicos estão preparados, mas assustados…

Há muito, os nossos médicos estão frustrados.
Há muito os nossos hospitais são focos de contágio para doenças infeciosas.
Há muito que o nosso sistema de saúde é precário.

E agora veio uma pandemia, que nos obrigou a quase todos, pelo menos àqueles que podem, a fecharem-se em casa para se protegerem e não propagarem o contagio. Estivemos a assistir à China e Itália abarrotarem os seus hospitais, fecharem as suas ruas, ficarem sem leitos, nem máquinas respiradoras para dar assistência a quem estivesse contaminado e em estado grave. Por sorte não temos o mesmo número de contaminados que esses países, pelo menos nisso fomos poupados. Pelo menos os nossos médicos e enfermeiros, os guerreiros da linha da frente estão preparados. Mas temem também.

Temem porque o sistema de saúde, que não depende só deles, especialmente no que concerne a orçamentos e decisões, não está preparado para fornecer-lhes as ferramentas que eles precisam para entrar em acção contra esta pandemia. Temem porque não há condições de biossegurança, em relação às doenças contagiosas que já cá temos, quanto mais em relação à Covid-19. Temem porque existe falta de material para protecção individual deles, máscaras, óculos, luvas, fatos… Temem porque em todo o país não devem haver mais do que 50 ventiladores mecânicos para dar assistência aos pacientes com falhas respiratórias, complicação característica da Covid-19

… E têm toda a razão!

O nosso sistema da saúde tem-nos falhado desde o início. Não tem melhorado, não tem atendido às necessidades da população.

Quando se fala em saúde materna, é dos mais lastimáveis que existem. Direitos que são assegurados lá fora às mulheres em trabalho de parto, aqui são-nos negados sempre com a desculpa de que ainda não temos condições para “proporcionar” estes direitos às mães. Violência obstétrica é praticada como o prato do dia, e manter-se as mães e famílias na ignorância quanto aos seus direitos, aos procedimentos, às justificações de porquê se tomam certas decisões e acções quanto aos seus corpos, seus filhos, sua saúde e bem-estar é religião. Ainda assim confiamos - ou nos conformamos, nos enchemos de coragem, fechamos os olhos ao maltrato e injustiça - e vamos ter os nossos filhos às nossas instituições de saúde públicas ou privadas. Quem pode sai do país para melhor acompanhamento, sai.

Mas e agora que as fronteiras estão fechadas e não podemos sair para ir ter os nossos filhos fora?
Agora que temos mesmo que ter os nossos filhos só cá em Angola, só nas nossas províncias, sem a chance de sair daqui enquanto o nosso mundo estiver sob a ameaça do contágio da Covid-19. Não sabemos quando mudará este cenário, não sabemos se piorará este cenário, e a única opção que temos é ir ter os nossos filhos às nossas instituições de saúde.

Instituições em que os médicos estão justificadamente com medo, em que os médicos estão à muito tempo frustrados, em que o nível de tensão, stress e medo aumentou, em que não há luvas, máscaras, óculos, em que existem debilidades nas medidas de biossegurança.  Para além do nosso já existente medo do maltrato recebido nas unidades de saúde ao irmos ter os nossos filhos, do abandono, da negligência, da separação dos nossos acompanhantes, agora temos o medo do contágio e de que cenário vamos encontrar nos hospitais. Se normalmente já não se sabe o que se vai encontrar no ambiente hospitalar, pior agora nesta época de grande incerteza, medo, tensão e instabilidade.

Estamos sem alternativas…

Enquanto as nossas irmãs noutros países com um sistema de saúde melhor neste momento começam a voltar-se para as outras opções de que dispõem as suas sociedades, como o parto domiciliar ou em casas de parto, nós nos debatemos com uma realidade em que não existem estas duas opções como legais, válidas e estruturadas para nós.  Casas de parto não existem. As parteiras tradicionais estão proibidas de efetuarem a sua profissão. As enfermeiras parteiras especialistas estão proibidas de atender a domicílio, obstetras também.

Por muito menos do que passamos nós aqui, mulheres no mundo desenvolvido começam a ponderar ter os seus filhos fora das instituições de saúde. A maior queixa de mulheres nos Estados Unidos ou Austrália, por exemplo é a medida que proíbe ou restringe a presença do acompanhante durante o parto e visitas no pós parto. Isto já foi suficiente para que elas questionassem o parto hospitalar, pois o apoio do acompanhante por ser imprescindível, é um direito de toda a parturiente. Em países como Brasil ou Portugal as razões são o risco de contaminação, o risco da falta de leitos, e a mesma medida proibitiva ou restritiva quanto aos acompanhantes. Portugal e Brasil, contam com mais alternativas que nós, é legal assistir uma mulher fora de um hospital, existem instituições para a formação destes profissionais, existem casas de parto, mas ainda assim existe um número reduzido de profissionais preparados para dar assistência ao parto não hospitalar.

Numa altura em que vemos o mundo parar e mudar, virar de cabeça para baixo, numa altura em que o normal já é e será inevitavelmente diferente daquilo que sempre conhecemos como normal, precisamos começar a pensar em não fechar as portas às opções alternativas que temos.

A obstetrícia moderna, em salas de parto, começou no século XIX, cerca de 200 anos atrás. Nós existimos como Homo Sapiens entre 400 mil e 100 mil anos. Isto quer dizer que bem ou mal, durante muito mais tempo da nossa existência os partos se deram fora das salas de parto, e ainda por muitos lugares do mundo, e a maioria no nosso país, continua a dar-se fora das salas de parto. O trabalho de parto é um evento familiar e fisiológico, que pode muito bem ser feito fora de uma unidade hospitalar quando é de baixo risco, existe uma gravidez saudável, um bebé e uma mãe saudáveis. O que precisamos é de profissionais preparados e capacitados para assistir a estes tipos de parto, normais, naturais de baixo risco, que são a maioria, e deixar que os hospitais tomem conta de todos os outros partos de risco, com complicações e patologias  que de facto merecem atenção hospitalar.

Enchermos os hospitais de partos de baixo e alto risco, não é uma opção que optimize a gestão do serviço de saúde. É uma opção que tem enchido os hospitais, sobrecarregado os profissionais e levado a um desgaste físico e mental destes que se reflete na assistência dada às parturientes que aos seus serviços recorrem. As alternativas ao parto institucional não são uma má opção, não são uma opção insegura. São uma opção que deve ser bem estudada, na qual se deve investir, que se deve incentivar para alívio do próprio sistema de saúde, para a criação de mais empregos, de diversidade nas escolhas e maior conforto das mulheres e suas famílias.

Agora que estamos com o mundo de pernas para o ar, temos a cabeça na terra. Na terra que nos dá estabilidade, nos ancora, nos dá recursos e alimento, vamos pensar em devolver o parto às mulheres e à família.

Pernas no ar, trazem-nos cabeça à terra... Cabeça no ar foi o que tivemos este tempo todo.
Talvez agora com a cabeça na terra possamos ter consciência de recorrer às nossas raízes, ao nosso ancorar na nossa capacidade de parir.

Temos que confiar em nós mesmas, porque sabemos parir. Temos que criar alternativas para os nossos partos, para parirmos como melhor sentimos, seja num hospital, seja numa casa de parto, seja em casa, seja onde decidamos. A escolha deve ser bem informada, consciente e bem ponderada, mas deve ser nossa.

domingo, 29 de março de 2020

O Corpo Feminino Sagrado


Quando nascemos somos puras, sabemos o que viemos ao mundo fazer, sabemos quem somos, de onde viemos e estamos em constante contacto com os seres de luz que nos guiaram até a este mundo.

Ao crescer, este mundo nos vai ensinando os seus meios, nos vai ensinando como nos devemos comportar nele, como devemos usar os nossos corpos, e é tanta coisa para aprender- porque precisamos aprender para sobreviver-, é um aprendizado tão intenso que aos poucos nesse esforço que fazemos vamos deixando a nossa conexão com a nossa história e com os nossos companheiros divinos. Coisas que já existiam muito antes do nosso nascimento.

Recuperar a esta nossa identidade espiritual, muitas vezes leva-nos à religião, o que também nos ensina novas coisas sobre nós. Coisas em que acreditamos, independentemente de as sentirmos como verdadeiras ou não nos nossos corpos, nos nossos corações. Criamos o nosso sistema de crenças e vivemos segundo elas.

Quando no Sagrado Feminino se fala num corpo feminino sagrado esta noção pode soar muito parecida à que nos foi ensinada pela religião. E apesar de ter algumas semelhanças pois partes das religiões foram inspiradas nos princípios do Sagrado Feminino também, as noções são um tanto diferentes.

Considerar o nosso corpo sagrado, não é fecha-lo a sete chaves e esconde-lo do mundo, oferece-lo só e unicamente ao homem que nos traz o casamento. Muito pelo contrário, é despir-se de roupas, conceitos e ordens. É olhar-se a si própria sem se julgar, sem preconceitos, sem hesitações e... Amar-se! 

É ser-se verdadeira a si mesma.

Olhar para cada curva dos seus seios, estando consciente de que você tem a capacidade nutridora. E quando falo nutridora, não falo só do amamentar um bebé. Falo de todo o tipo possível e imaginário de nutrição que as mulheres sabem dar. Nutrição emocional, psicológica, espiritual, física e até profissional. Estar conscientes de que a estrutura física desses seios lhe permite alimentar a humanidade e a sua consciência, e de que até que o ser humano esteja desenvolvido o suficiente para comer aquilo que a terra lhe dá, para ser autónomo de mente, corpo e espírito, são os seus seios que lhe fornecem o alimento, cólo, alento, que o nutre e o capacita para estar pronto para digerir um fruto, uma experiência, um desafio.

Olhar para os seus pés e ver o quão fortes eles são por sustentar todo o seu peso, e leva-la em frente no seu caminho pelo mundo. Dê-se conta que os seus pés lhe garantem liberdade.
A minha bizavó dizia, "a sorte está nos teus pés." Eles tiram-na da cama, fazem-na erguer-se, só eles a encaminham para o seu destino, só eles a tiram da inércia e procrastinação e têm a força de estremecer o chão com todo o seu poder a cada passo que dá!

Olhar para as suas mãos e estar grata pelo infindável número de coisas que elas lhe permitem fazer: mãos que acariciam, mãos que curam, mãos que trabalham, mãos que cria, mãos que enxugam lágrimas e acalentam prantos em horas difíceis, mãos que transmitem energia através de gestos sinceros, mãos que cozinham para mais uma vez alimentar a humanidade. O equilíbrio e saúde da humanidade depende das suas mãos.

Olhar para as suas pernas e ver o quão fortes e ao mesmo tempo suaves macias e quentes elas são. Quantos colos elas oferecerão, quantas crianças se sentirão seguras sobre e entre elas, quantas vezes elas guiarão o homem ao doce da vida de que elas são guardiãs. Pela sua força e maciez, elas defendem, guiam, acolhem, guardam.

Olhar para o seu ventre e saber que nele reside o campo energético, o portal que estabelece a comunicação entre o universo, o mundo espiritual e a terra, o mundo material. Saber que só através desse portal é possível as almas virem encarnar neste mundo, saber que através dele é possível fazer o caminho para a transcendência, saber que no mundo este é o único meio material pelo qual se chega ao, e se vem do espiritual. Saber que por causa disso a ligação das mulheres com o mundo espiritual é mais fluída, mais rápida, mais facilitada.

Olhe-se consciente de tudo isto e diga-me se não é sagrado o seu corpo? Se não merece que o ame, que dance e cante em sua honra, que o venere e cuide bem dele, deixando que só toque em sua pele aquilo que não a vai lastimar, cortar, intoxicar, magoar. Deixando que só entre pela sua boca alimento que o vai nutrir e não que o vai destruir. Deixando que o seu corpo lhe fale, lhe mostre o que é bom para ele e o que não é, deixando que ele guie os seus movimentos e se desprenda das amarras ensinadas pela sociedade para o conter.

O seu corpo é selvagem. Ele quer sentir, ele quer SE sentir. Ele quer se expressar, quer criar, quer falar, quer ser ouvido, quer ser doce, quer ser livre, quer... SER!

É no simples deixar ser, que encontramos a essência, que encontramos o sagrado, que encontramos a Deusa...

Sara

domingo, 22 de março de 2020

A Dúvida do Bebé


Quando um bebé está para chegar, imagino ser esse o momento em que um espírito tem o o primeiro contacto com a dúvida. Esse questionamento humano que tanto nos tira o sossego.

Um espírito não tem dúvida, um espírito vive numa certeza sobre o tudo e o nada, tem uma sabedoria infinita que lhe permite não sentir dúvida porque tudo o que precisa saber já o sabe por intuição. Chamaa simlpesmente o conhecimento e muito rápiamente ele vem até si.

Já quando o espírito começa uma jornada humana, grande parte desse conhecimento deixa-se ficar no lugar de que o espírito se vai distanciando, enquanto ele vai entrando no plano físico. Quando está completo o seu corpo físico e chega o momento de entrar para o mundo, sair do portal que é o ventre da sua mãe,, vem a dúvida. Muito como nós nos perguntamos o que está para lá da morte, um bebé deve-se perguntar o que está para lá daqui? 
Depois de passar à volta de 40 semanas dentro de um ventre em que lhe foram conferidas qualidades humanas e físicas, e devagarzinho se foi familiarizando com a escuta humana, o paladar humano, o toque humano, a visão humana, o olfato humano, e os sentimentos humanos- da mãe que o bebé sente, e os seus que vão surgindo em relação aos da mãe- ainda que em pequena dimensão, a dúvida que vem do que vai acontecer quando aquele cólo do útero se abrir completamente deve ser o sentimento mais forte e medonho que lhe pode invadir.

O que está do outro lado?  Tudo que esse espírito conheceu até ali como vida humana vai mudar? Como será? Quem irá encontrar? As sensações com que se familiarizou nesse tempo estarão ainda aí? Porque é que ouve de lá de fora tanta conversa relacionada com sair do lugar confrontável em que está para o mundo exterior? Tem mesmo que sair? Para quê sair?

Das coisas mais difíceis de fazer na nossa condição humana é sair da nossa zona de conforto. Pensem no quão difícil e angustiante é nos desafiarmos e sairmos da nossa zona de conforto pela “primeira vez”. A nossa primeira saída da nossa zona de conforto é o nosso nascimento. Podem imaginar o processo psicológico por que esse bebé passa?

O povo Dagara do norte de Afrika, que se espalha pelo Ghana Burkina Faso e Costa do Marfim, até hoje ainda faz uma cerimónia que muitos mais de nós povos afrikanos fazíamos quando vinha um novo ser para o mundo. Através da utilização de ervas e num ritual shamânico seguro, a mãe é levada a um transe em que se convida a que o espírito da criança com quem ela está concebida, tome voz pela própria mãe e diga quem é e ao que veio. Há vezes em que o espírito é a encarnação de um ancestral que já partiu há algum tempo, outras vezes é um espírito novo, seja quem for, o seu nome é decidido nessa cerimónia, consoante o ancestral que retorna, e ou consoante a missão que vem tomar no mundo. Um acordo é feito entre a comunidade, a família e a criança, em como esta criança será criada e em como a comunidade lhe ajudará a orientar-se para a sua missão de vida.

Esta cerimónia dá confiança ao espírito para o momento do nascimento e prepara os pais, família e a comunidade para que saibam como criar e ajudar esta criança que aí vem a lembrar-se da sua missão e encaminhar-se na vida. Em Áfrika, criar uma criança não é trabalho só do pai e da mãe, é trabalho comunitário, especialmente nas aldeias.

É pena que no mundo moderno em que vivemos menos e menos isto aconteça… E mais e mais nos questionamos como educar os nossos filhos, e pior, mais e mais queremos todos saber, passamos a vida em buscar de nos responder a nós mesmos, o que estamos aqui a fazer. Afinal a tecnologia indígena, como lhe chama Malidoma Patrice Somé, já tinha o mecanismo para resolver esta nossa dúvida.
Me pergunto, como podemos hoje em dia, não tendo acesso a essa tecnologia indígena conseguir ajudar-nos a nós mesmos e aos nossos filhos a ter uma transição para o mundo físico mais confiante e a saber como orientá-los na vida de acordo com o seu propósito, a sua missão e não de acordo com a imposição daquilo que nós que já estamos no mundo físico à mais tempo achamos que eles devem ser ou fazer. O que muitas vezes causa choques -internos e com os pais- com a essência de cada um deles.

Sei que a gravidez é um período em que a nossa mente nos obriga à introspecçao. A voltarmo-nos para nós mesmas, para a nossa intuição e para os nossos instintos. Sei que é necessária essa conexão connosco mesmas, para podermos conectar com os nossos filhos ainda dentro dos nossos ventres. Sei que telepatia começa por aí, por sabermos identificar o que são os nossos sentimentos, pensamentos e palvaras e quais são os dos nossos filhos. Sei que a meditação nos ajuda muitíssimo nisso e que ela é, nada, mais nada menos que um estado leve, muito leve de transe, que pode ser trabalhado e nos dá valiosos presentes. Eu mesma em meditação já pude ouvir, não o meu, mas o coração do meu filho dentro a bater de mim. Sei que perguntando ao meu filho se ele era menino ou menina, com toda a certeza ele me respondeu “quem pensas que sou? É claro que sou um menino” com a personalidade forte que até hoje aos cinco anos o caracteriza. Milhões de mães podem concordar comigo nos acontecimentos “mágicos” que não sabemos explicar, que acontecem durante a gravidez, que nos são trazidos pela nossa intuição e que por tanta dúvida, que o mundo que não nos ensinou a lidar com a nossa intuição nos põe, deixamos de confiar neles, ou confiamos, mas depois pô-mos naquela caixinha do “assuntos misteriosos ficam só aí” e não nos aprofundamos neles.

No entanto a intuição feminina, é daquelas coisas que sabemos que não falha. Ela existe por um motivo.

Existe comunicação entre mãe e filho, e sei que a mãe só tem que saber como se dá essa comunicação para que possa confiar nela e não pensar que seja algo “da sua cabeça”, para depois o varrer para fora da cabeça como se varre a poeira de casa. Já alguns médicos ao fim da gravidez nos perguntam “tem tido algum sonho que lhe chame mais atenção?”. Isto porque eles sabem que nos nossos sonhos vêm sim mensagens que podem ser determinantes para o nosso parto. A nossa mente tem essa capacidade e cada vez mais a neuro ciência vai dando importância e valor a isso. Cada vez mais somos estimuladas a conversar com os nossos filhos dentro do nosso ventre e a nos afastarmos daquilo que tanto física como emocional e psicologicamente nos afecta negativamente, porque também afecta negativamente as crianças dentro de nós. A comunicação de nós para os bebés já é facto. Falta agora sabermos ouvir e ler a comunicação dos bebés para nós.

Que tal irmos treinando ouvir aquela voz que na nossa cabeça responde quando chamamos docemente “baby…?”, quais são as primeiras palavras que aparecem na nossa mente, que pensamos que são a nossa imaginação? São mesmo? Que tal irmos nos deitar à noite meditarmos um bocadinho e pedirmos a esse bebé que venha conversar connosco nos nossos sonhos? E que tal acreditarmos nas respostas que recebemos quando fazemos isso?

Que lindo seria preparar o caminho para que o bebé venha com confiança.
Que lindo seria saber no nosso íntimo como ajudar esse ser a caminhar.