domingo, 5 de abril de 2020

Pernas para o ar, cabeça na terra... Os nossos partos em tempo de Corona Vírus


Os nossos médicos estão preparados, mas assustados…

Há muito, os nossos médicos estão frustrados.
Há muito os nossos hospitais são focos de contágio para doenças infeciosas.
Há muito que o nosso sistema de saúde é precário.

E agora veio uma pandemia, que nos obrigou a quase todos, pelo menos àqueles que podem, a fecharem-se em casa para se protegerem e não propagarem o contagio. Estivemos a assistir à China e Itália abarrotarem os seus hospitais, fecharem as suas ruas, ficarem sem leitos, nem máquinas respiradoras para dar assistência a quem estivesse contaminado e em estado grave. Por sorte não temos o mesmo número de contaminados que esses países, pelo menos nisso fomos poupados. Pelo menos os nossos médicos e enfermeiros, os guerreiros da linha da frente estão preparados. Mas temem também.

Temem porque o sistema de saúde, que não depende só deles, especialmente no que concerne a orçamentos e decisões, não está preparado para fornecer-lhes as ferramentas que eles precisam para entrar em acção contra esta pandemia. Temem porque não há condições de biossegurança, em relação às doenças contagiosas que já cá temos, quanto mais em relação à Covid-19. Temem porque existe falta de material para protecção individual deles, máscaras, óculos, luvas, fatos… Temem porque em todo o país não devem haver mais do que 50 ventiladores mecânicos para dar assistência aos pacientes com falhas respiratórias, complicação característica da Covid-19

… E têm toda a razão!

O nosso sistema da saúde tem-nos falhado desde o início. Não tem melhorado, não tem atendido às necessidades da população.

Quando se fala em saúde materna, é dos mais lastimáveis que existem. Direitos que são assegurados lá fora às mulheres em trabalho de parto, aqui são-nos negados sempre com a desculpa de que ainda não temos condições para “proporcionar” estes direitos às mães. Violência obstétrica é praticada como o prato do dia, e manter-se as mães e famílias na ignorância quanto aos seus direitos, aos procedimentos, às justificações de porquê se tomam certas decisões e acções quanto aos seus corpos, seus filhos, sua saúde e bem-estar é religião. Ainda assim confiamos - ou nos conformamos, nos enchemos de coragem, fechamos os olhos ao maltrato e injustiça - e vamos ter os nossos filhos às nossas instituições de saúde públicas ou privadas. Quem pode sai do país para melhor acompanhamento, sai.

Mas e agora que as fronteiras estão fechadas e não podemos sair para ir ter os nossos filhos fora?
Agora que temos mesmo que ter os nossos filhos só cá em Angola, só nas nossas províncias, sem a chance de sair daqui enquanto o nosso mundo estiver sob a ameaça do contágio da Covid-19. Não sabemos quando mudará este cenário, não sabemos se piorará este cenário, e a única opção que temos é ir ter os nossos filhos às nossas instituições de saúde.

Instituições em que os médicos estão justificadamente com medo, em que os médicos estão à muito tempo frustrados, em que o nível de tensão, stress e medo aumentou, em que não há luvas, máscaras, óculos, em que existem debilidades nas medidas de biossegurança.  Para além do nosso já existente medo do maltrato recebido nas unidades de saúde ao irmos ter os nossos filhos, do abandono, da negligência, da separação dos nossos acompanhantes, agora temos o medo do contágio e de que cenário vamos encontrar nos hospitais. Se normalmente já não se sabe o que se vai encontrar no ambiente hospitalar, pior agora nesta época de grande incerteza, medo, tensão e instabilidade.

Estamos sem alternativas…

Enquanto as nossas irmãs noutros países com um sistema de saúde melhor neste momento começam a voltar-se para as outras opções de que dispõem as suas sociedades, como o parto domiciliar ou em casas de parto, nós nos debatemos com uma realidade em que não existem estas duas opções como legais, válidas e estruturadas para nós.  Casas de parto não existem. As parteiras tradicionais estão proibidas de efetuarem a sua profissão. As enfermeiras parteiras especialistas estão proibidas de atender a domicílio, obstetras também.

Por muito menos do que passamos nós aqui, mulheres no mundo desenvolvido começam a ponderar ter os seus filhos fora das instituições de saúde. A maior queixa de mulheres nos Estados Unidos ou Austrália, por exemplo é a medida que proíbe ou restringe a presença do acompanhante durante o parto e visitas no pós parto. Isto já foi suficiente para que elas questionassem o parto hospitalar, pois o apoio do acompanhante por ser imprescindível, é um direito de toda a parturiente. Em países como Brasil ou Portugal as razões são o risco de contaminação, o risco da falta de leitos, e a mesma medida proibitiva ou restritiva quanto aos acompanhantes. Portugal e Brasil, contam com mais alternativas que nós, é legal assistir uma mulher fora de um hospital, existem instituições para a formação destes profissionais, existem casas de parto, mas ainda assim existe um número reduzido de profissionais preparados para dar assistência ao parto não hospitalar.

Numa altura em que vemos o mundo parar e mudar, virar de cabeça para baixo, numa altura em que o normal já é e será inevitavelmente diferente daquilo que sempre conhecemos como normal, precisamos começar a pensar em não fechar as portas às opções alternativas que temos.

A obstetrícia moderna, em salas de parto, começou no século XIX, cerca de 200 anos atrás. Nós existimos como Homo Sapiens entre 400 mil e 100 mil anos. Isto quer dizer que bem ou mal, durante muito mais tempo da nossa existência os partos se deram fora das salas de parto, e ainda por muitos lugares do mundo, e a maioria no nosso país, continua a dar-se fora das salas de parto. O trabalho de parto é um evento familiar e fisiológico, que pode muito bem ser feito fora de uma unidade hospitalar quando é de baixo risco, existe uma gravidez saudável, um bebé e uma mãe saudáveis. O que precisamos é de profissionais preparados e capacitados para assistir a estes tipos de parto, normais, naturais de baixo risco, que são a maioria, e deixar que os hospitais tomem conta de todos os outros partos de risco, com complicações e patologias  que de facto merecem atenção hospitalar.

Enchermos os hospitais de partos de baixo e alto risco, não é uma opção que optimize a gestão do serviço de saúde. É uma opção que tem enchido os hospitais, sobrecarregado os profissionais e levado a um desgaste físico e mental destes que se reflete na assistência dada às parturientes que aos seus serviços recorrem. As alternativas ao parto institucional não são uma má opção, não são uma opção insegura. São uma opção que deve ser bem estudada, na qual se deve investir, que se deve incentivar para alívio do próprio sistema de saúde, para a criação de mais empregos, de diversidade nas escolhas e maior conforto das mulheres e suas famílias.

Agora que estamos com o mundo de pernas para o ar, temos a cabeça na terra. Na terra que nos dá estabilidade, nos ancora, nos dá recursos e alimento, vamos pensar em devolver o parto às mulheres e à família.

Pernas no ar, trazem-nos cabeça à terra... Cabeça no ar foi o que tivemos este tempo todo.
Talvez agora com a cabeça na terra possamos ter consciência de recorrer às nossas raízes, ao nosso ancorar na nossa capacidade de parir.

Temos que confiar em nós mesmas, porque sabemos parir. Temos que criar alternativas para os nossos partos, para parirmos como melhor sentimos, seja num hospital, seja numa casa de parto, seja em casa, seja onde decidamos. A escolha deve ser bem informada, consciente e bem ponderada, mas deve ser nossa.

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